No meio da noite em um dia de semana, o cenário
dentro do ônibus é assim: pessoas com cara de derrota, cansadas, amassadas, fedidas,
imploram pelo amor de Deus que haja um lugar vago onde possam repousar suas
ancas a caminho de casa. Alguns levando a situação com bom-humor, lembram das
peripécias do dia, outros se resignando, somente esperam a chegada a casa,
outros ainda, com raiva do mundo, fazem demonstrações explícitas de sua
indignação.
Como faz todos os dias, João entra no coletivo e se
senta no mesmo lugar. Mas, dessa vez, emburrado. O cobrador, paz e amor, não dá
muita atenção. “Vai ver acordou de pé esquerdo”, pensa. E o motorista segue. Lá
pelas tantas, João se levanta. A moça ao seu lado se vira em direção ao
corredor e dá espaço para que ele passe, sem nem notar sua fúria. Ela é uma das
resignadas. Está muito concentrada em seu próprio cansaço para se atentar a ele.
João caminha até o corredor e lá fica, se equilibrando por entre as
manobras do motorista que também parece ter pressa em chegar a casa. Em uma das
curvas, ele esbarra feio na loira sentada à sua frente. “Desculpa”, diz seco,
revoltado por ter que passar por mais essa. “Depois de tudo o que já aconteceu
hoje”, pensa. A loira se mostra bastante invocada e faz um olhar de quem diz:
“Isso lá é jeito de pedir desculpas?”. Pronto. O circo está armado.
Ela não gosta de como ele pediu desculpas. Ele não gosta de como ela
olhou para ele. Ambos começam a discutir. Uma gritaria é instaurada. Alguns se
afastam, outros acordam, outros ainda só querem manda-los ficarem quietos. As
vozes ficam mais exaltadas. Os xingamentos mais ferozes. É “vadia” para cá,
“arrombado”, pra lá. O magrelinha ao lado não se conforma e parte pra cima de
João. “Você tá loco de falar assim com a mulher?”, diz, o chamando para briga.
Eles começam a se estapear. Chutes e pontapés são distribuídos aos montes.
O magrelinha enche o peito, agarra nas barras laterais do ônibus e
concentra toda sua potência no pé direito que, (Pimba!), acerta o tórax do
rival e o faz cair no fundo do carro. Agora, além de revoltado, raivoso e indignado,
João se sente humilhado. A ira toma conta de seus olhos e ele se levanta como
um touro para atingir o magrelinha.
Todos reivindicam uma atitude do cobrador. Paz e amor, como só ele
sabe ser, sempre repete: “Minha melhor arma é a sabedoria”. Então, vai calmamente
em direção aos dois homens e pede que parem com a confusão. “Tira a mão de
mim”, diz o magrelinha. Imediatamente, o cobrador leva os braços para cima,
consente com a cabeça e volta para sua cadeira, onde fica, como se nada
houvesse.
Chega o ponto de descida de João. Ele continua chamando loira e
magrela para a briga. “Desce aqui pra ver só!”, provoca. Ambos rebatem. A loira
diz ser faixa preta de jiu jitsu, o magrela diz não ter medo de bicha loca. O
bate-boca segue, mas João desce, ainda que aos berros. Ele precisa fazer alguma
coisa. Reverter a situação. Não quer sair por baixo. Não depois de tudo. Então,
vai direto até a um amontoado de coisas na calçada e acha um pedaço de pau. Com
ele, esbraveja e ameaça joga-lo no ônibus junto com tudo o mais que encontrar.
Os passageiros amedrontados e já entediados com a história toda pedem,
quase em coro, que o motorista arranque e saia logo dali. Ele faz que vai
atender a solicitação. Mas, não o faz. Em menos de um minuto, o ônibus para e a
porta dianteira é aberta. O superman entra em ação. Ele desce com o braço
direito enrijecido, apontando uma pistola calibre 40 para o protagonista da balbúrdia.
Pessoas se jogam no chão. O som é de jacas despencando. Superman se diz
policial, manda João parar de tumultuar e caminha a passos determinados em
direção a ele, que fica atordoado. “Como eu posso ter acordado de manhã para
trabalhar e estar indo dormir com uma arma na cabeça?”, pensa enquanto corre
para casa.
João vai, superman volta, motorista dirige e a vida continua.